Esta conversa foi realizada em dois momentos durante o mês de abril de 2013, antes da gravação do CD S’io Esca Vivo pela pianista Karin Fernandes e convidados. Resolvemos manter o frescor do fluxo das ideias, que nos pareceu bastante representativo das inquietudes de Maurício Ayer em seu contato com as obras de Edson Zampronha, e das respostas que Zampronha apresentava, levantando por sua vez novas perguntas, cada vez mais instigantes. Este ir e vir das ideias nos pareceu muito enriquecedor, e decidimos não forçar a ordem das respostas para que se encaixasse dentro da ordem do CD.
Cada obra recebe diversos comentários. Não são notas de programa. Muito melhor que isso, são um diálogo franco entre o compositor Edson Zampronha e as impressões de Maurício Ayer. Trata-se de um rico retrato da quantidade e qualidade das questões que a música de hoje levanta, propondo caminhos artísticos surpreendentes.


Lamento para piano  [piano solo – 2005]

Maurício Ayer: Caro Edson Zampronha, gostaria de iniciar perguntando em que circunstâncias você compôs Lamento para piano e por que esse título?
Edson Zampronha: Compus esta obra como uma resposta instrumental à minha obra Lamenti, obra eletroacústica composta em 2004 em Birmingham, Inglaterra. Lamenti incluía um segmento musical que me tocava de forma muito especial. Tinha um grande potencial expressivo, então decidi realizar a tradução criativa desse segmento eletroacústico a uma obra completamente independente, mas instrumental. O titulo da obra se deve à utilização constante de um segmento melódico conhecido como “figura de lamento”, que nesta obra é uma segunda menor descendente. Este intervalo é apresentado tanto melodicamente quando harmonicamente, gerando a oposição entre acordes expressivamente dissonantes (como no início) e arpejos mais líricos.

MA: Noto o uso de acordes bem abertos no piano, que você deixa ressoar. É algo que está presente em outras peças também (Ciaccona, por exemplo), de maneira que parece ser algo que lhe interessa no piano, fazer soar acordes inarmônicos, como o som de um sino. É isso mesmo? Você tem um interesse especial pela similaridade possível entre o som do piano e do sino?
EZ: Talvez seja possível realizar essa associação com um sino. Busco sempre que a música seja inteligível, e acordes complexos requerem tempo para serem absorvidos. A repetição dos acordes busca sua compreensão pelo ouvido, e a cada repetição entendemos mais e mais essa sonoridade, e podemos entrar nesse universo de ressonâncias complexas. Outra possibilidade é deixar o acorde soando, com algum apoio que permita sua continuidade em outro meio sonoro, que é o que é realizado pela percussão em Ciaccona.

MA: Em Lamento, pode-se reconhecer um uso peculiar dos registros do piano. Todo o espectro de alturas é preenchido, há contrastes entre passagens muito agudas com outras muito graves, momentos em que mão esquerda e direita se distanciam radicalmente nos registros, preenchendo graves e agudos, sem preencher o médio. Como esse aspecto foi estruturado nessa obra?
EZ: Utilizo todo o espectro do piano, de tal forma que ele pode ressoar completamente. Cada registro do piano tem um timbre próprio, e uma expressividade própria. A utilização combinada de vários registros torna possível a construção de uma sonoridade variada, distribuída em registros, que transcendem a tessitura mais tradicional do repertório de piano. Os extremos agudos e extremos graves, nos pianos atuais, permitem conseguir expressividades únicas, muito atrativas, que exploro nesta obra.

MA: Alguns materiais estão claramente delineados nessa obra. O primeiro, sobre o qual falamos, são os acordes sobrepostos e ressonantes. A segunda são o que poderia chamar de frases em estilo “série harmônica”, em que as notas vão se complementando do grave ao agudo como formantes de um espectro, e que podem eventualmente se desdobrar em pequenos trechos com alguma movimentação de vozes. Um terceiro material seriam os trilos em sextinas, que na partitura aparecem com a indicação “come un trillo lento”.
Os acordes se desdobram nos momentos com acordes repetidos, que pelo ataque reiterado mantêm a sua sonoridade presente, porém sem deixar que a ressonância perfaça seu ciclo de nascimento, sustentação e morte. O segundo material evolui pelo acréscimo de notas em homofonia nessa trajetória do grave ao agudo, de maneira a ir se transformando em acordes. Percebe-se então que o desdobramento do primeiro material tem algo de síntese do desdobramento do segundo material. Por fim, os trilos se sobrepõem primeiro a uma melodia, depois a acordes que ressoam, como que incorporando o primeiro material.
Em resumo, é como se os materiais fossem se transformando uns pelos outros. Essa análise faz sentido desde o seu ponto de vista? Como você vê a elaboração dos materiais nessa peça?
EZ: Exatamente! Muito bom! Como disse, a figura de lamento aparece em simultaneidade nos acordes e em sucessão nos acordes arpejados (um pouco como série harmônica realmente – de fato é uma espécie de série harmônica com certas dissonâncias). Acrescentaria apenas que os trilos são, na verdade, a figura de lamento em forma de ornamento. E o final da obra revela isso: o ornamento é amplamente estendido e se transforma em uma figura de lamento. O ouvinte é levado a reinterpretar aquilo que havia escutado antes dando outro sentido a esse material. Escutamos a figura de lamento em todas as partes da obra: acordes, arpejos, ornamentos e até na forma: se consideramos que os acordes do início são uma síntese e sua ressonância são os arpejos, a obra termina com essa resolução – ou seja, termina com os arpejos – e não como a volta de uma parte A, que seria a abertura da obra. Neste sentido, os dois materiais iniciais da obra são também reinterpretados: se inicialmente são contrastantes, ao final se unem formando uma figura que conecta acordes e arpejos em um único evento, e o trilo que se transforma em figura de lamento no final é chave para essa conexão.

MA: Os andamentos também parecem se influenciar por esse cruzamento de materiais. A princípio, a entrada das “séries” ou arpejos é identificada por um andamento mais lento. Porém, nas suas reaparições, além do acréscimo de notas, ele vai ficando mais rápido, até dobrar o andamento (de semínima a 52 para semínima a 104) e desembocar nos acordes repetidos. Qual o papel das mudanças de andamento nessa obra?
EZ: É exatamente isto: a parte lenta, a dos arpejos, se aproxima dos acordes. Essa aproximação é importante para que os dois elementos, que poderiam vir a ser interpretados como opostos na verdade se transformem em duas partes contrastantes de uma única figura, levando nossa escuta a reinterpretar esses materiais, a dar um novo sentido a eles, construindo assim a dramaticidade retórica da obra.


Ciaccona [piano e percussão – 2007]

MA: Vou começar com a mesma pergunta: em que circunstâncias Ciaccona foi composta?
EZ: Essa obra foi composta para uma série de concertos que realizei com o excelente percussionista Augusto Moralez. Realizamos um projeto de vários concertos que incluíam obras para piano e percussão, e era muito importante incluir uma obra com as características de Ciaccona.

MA: Gostaria de compartilhar com você algumas de minhas impressões sobreCiaccona, e para isso vou me alongar um pouco. Desde o primeiro som, me vi lançado em um território de evocações. A sonoridade do acorde inicial, a figura rítmica e o timbre do piano me lembram o movimento de piano e violoncelo doQuatuor pour la fin du temps, do Olivier Messiaen. Lembrei da parte do piano, claro, mas aí é como se não viesse o violoncelo, como se a música nesse momento assumisse um caráter de espera – mais que de repouso. Mais adiante vem uma parte com um caráter polifônico e, então, com uma voz que ressalta, na forma de fragmentos melódicos curtos que se repetem, de um modo que remete a Debussy. Os acordes se tornam menos densos, com uma sonoridade que também pode evocar Debussy.
Mas a textura geral da peça, com percussões ruidosas e ressonantes, entremeadas de silêncio, com uma placidez estabelecida e não questionada, me remete a uma referência cultural mais vaga, o Japão. Em diversas passagens, senti que se incidisse uma flauta, cairíamos em uma música de teatro Nô. E de novo sinto essa música à espera, agora da flauta japonesa, destemperada, com seus glissandi. Quase no meio da música, na página 7 da partitura, é o momento em que essa sonoridade “japonesa”, por assim dizer, me vem com maior evidência, e é também quando me parece que a peça acaba de apresentar o material com o qual trabalhará, como que preenche suas lacunas.
A parte essas referências mais gerais, para mim a peça toda soa como sinos, e aí a evocação para mim é de ordem mais pessoal, os sinos tocando, sem pressa e quase sem por que, num fim de tarde de Ouro Preto, em Minas Gerais. As percussões se incorporam à textura de sinos do piano, e é como se os ruídos da paisagem fossem tão coerentes com o som que destaco dela que não fosse possível uma cisão completa.
Bom, as evocações são bastante díspares, mas todas me parecem fazer sentido. E eu fico pensando como isso é possível. Haveria uma superfície sobre a qual essas imagens fizessem sentido em transparência umas sobre as outras?
É aí que eu ouço essa peça quase como uma “música em negativo”, como se ela esperasse a incidência de um evento que na verdade não ocorre, e que então essa incidência desse relevo às coincidências que ali habitam sem se mostrar. É como se ela me convidasse a esperar o violoncelo do Messiaen ou a flauta do teatro Nô (voltando às minhas referências), elementos que não virão. Na re-escuta, percebo que os trechos “Cantabile” (as partes que me remetem a Debussy), de algum modo se contrapõem a essa impressão, pois são trechos mais assertivos. De todo modo, essa textura receptiva parece fazer parte da estética da obra.
Como você vê, a peça é para mim altamente evocativa. O que você teria a comentar a respeito de minhas afirmações?
EZ: Acho excelentes as suas impressões sobre essa obra! Compreendo perfeitamente a forma como você associa essa obra a outros compositores, incluindo o movimento do histórico quarteto de Messiaen. Gosto muito, também, de saber de suas associações com o teatro Nô e Debussy. Minha música assume claramente o diálogo com obras do repertório ocidental e não-ocidental. Gosto muito das associações que você realiza. Mesmo que não inteiramente coincidentes com as minhas, o importante é que as evocações ocorrem, mesmo quando não são as mesmas. E não são as mesmas porque são evocações gerais, e cada ouvinte pode materializar essas evocações de forma particular, segundo sua experiência pessoal. Dessa forma, a obra passa a transferir elementos de outras obras para dentro da experiência de escuta dessa composição, e isso sim é o fundamental.

MA: A peça é extremamente evocativa. O título, no entanto, é neutro, permanece numa referencialidade interna ao universo da música. Qual a intenção desse título?
EZ: O título, na realidade, também realiza uma evocação: evoca a música barroca. No entanto, não escutamos as figuras barrocas aqui. O que se repete é um desenho profundo, uma certa sintaxe, uma circularidade que é mantida durante toda a obra, mas com algumas variações. O título revela a referência sintática da obra, aquilo que não se escuta logo de imediato. Acho que talvez isso possa dar esta impressão de ser uma música em negativo, como você menciona. Talvez pudéssemos dizer que essa obra seja muito transparente, e que seria possível esperar a introdução de algum evento que nunca ocorre. O fato de este evento não ocorrer induz nossa atenção a se fixar nesse vazio, nesses eventos que não seriam quase nunca dignos de atenção, e adquirimos uma nova percepção daquilo que escutamos, encontrando aí um mundo sonoro muito especial, repleto de sentidos.

MA: Quanto à harmonia, Ciaccona me coloca algumas questões. De início, noto algo que depois fui reencontrar com bastante evidência em outras peças, que é uma predominância ou presença marcante de certos intervalos: as sétimas, nonas, quintas justas e o trítono. O primeiro acorde já dá clara evidência disso, do grave ao agudo: sol#-lá-mi-ré# (uma quinta justa dentro da outra, de modo a formar uma nona menor e uma sétima maior). Como você constitui os seus acordes? Refiro-me em particular a essa peça, mas tenho a impressão de que algumas preferências suas são recorrentes, como os intervalos que mencionei.
EZ: Construo meus acordes a partir de experimentos realizados diretamente com os sons, associando conceitos a essa experiência que servem para organizar e criar grandes acordes (ou acordes-espectro) que podem chegar a ter nove notas, quatorze notas, 24 notas ou mais. Em alguns casos meu ponto de partida é um espectro de um som que logo transformo e desenvolvo artisticamente. Em outros casos, crio artificialmente esses acordes, com base em experimentos anteriores. A natureza dos sons e a experiência com eles me ensina muito, talvez mais que a teoria e especulações puras. Mas em nenhum caso recolho um espectro de um som e aplico diretamente à música. Sempre há uma importante e refinada elaboração artística, sempre requerendo bastante esforço e experimentação. Esse trabalho sobre o acorde-espectro é fundamental para minhas músicas, e posso demorar muito tempo até conseguir uma construção realmente convincente.
Todas as obras deste CD menos a Composição para Piano VII trabalham dessa forma. A Composição para Piano VII é uma exceção porque ela provém de um projeto que iniciei na década de 1980, um rico projeto que ainda não terminei, e que está dando ótimos resultados.

MA: Há também alguns núcleos que polarizam a obra e que parecem evocar um esquema harmônico que eu poderia dizer que é de índole tonal. Esses polos seriam Lá bemol, Ré bemol e Lá bemol novamente no final, com passagens por Dó e uma espécie de Fá menor. A polarização no agudo da nota fá também de algum modo participa disso. Claro que as formações de acordes não são tonais, mas o esquema geral dos centros de polarização não seria uma outra forma de enraizamento ou evocação histórica?
EZ: Os acordes-espectro podem receber certas polarizações, como as que você identifica, e podem oferecer uma escuta funcional das harmonias resultantes. Parto de um acorde muito grande e extraio daí um conjunto de sonoridades sugeridas, que mantém conexão com este grande acorde-espectro, o que torna possível encontrar universos harmônicos muito diferentes que, no fundo, se relacionam todos entre si. Se você preferir, a tonalidade na minha música é um acorde-espectro do qual tudo parte.
Esta forma de trabalhar permite uma composição em dois níveis hierárquicos: um nível profundo (que inclui o acorde-espectro, um conjunto de formas arquetípicas que são reelaboradas criativamente a partir de regras semióticas, e figuras chave que são como subtemas que atravessam a composição) e um nível de superfície que incluir elementos em diversos casos inarmônicos entre si, que realizam referências a diferentes contextos e épocas musicais, criando uma intertextualidade forte. Essa separação entre dois níveis, os dois presentes empiricamente na música (mesmo que não de forma completa) é o que permite que escutemos acordes dissonantes, claramente não-tonais, com funcionalidade próxima à da música tonal, mas sem que seja possível identificar realmente onde está aquilo que explica essa funcionalidade. Ela está em um nível profundo, que muitas vezes é, também, uma referência a outro período como é o caso de Ciaccona.

Feroce [violoncelo e piano – 2011]

EZ: A partir de uma encomenda que recebi em 2011, me surgiu a ideia de compor uma obra para violoncelo e piano com fragmentos que durassem 20 segundos. Os fragmentos deveriam se suceder de forma rápida, em um tempo brevíssimo, e este foi o ponto de partida para Feroce.

MA: Há um trecho em Feroce em que mais uma vez me vi remetido ao Quatuordo Messiaen, um trecho que me lembra os famosos ritmos não retrogradáveis. Messiaen novamente esteve presente nessa composição?
EZ: Talvez a similaridade com Messiaen seja ocasionada por outra razão, que não posso detectar neste momento. Os ritmos não retrogradáveis, se aparecem em minha música, ocorrem de forma involuntária. Pessoalmente não sou atraído por estruturas em retrogrado, exceto quando o propósito é criar uma sonoridade completamente distinta da original. Mas os ritmos não retrogradáveis de Messiaen possuem uma característica que, esta sim, pode ser talvez o ponto de contato: ritmos téticos que rapidamente introduzem estruturas sincopadas. Isto pode ocorrer, e esta qualidade rítmica, esta sim, comparto.

MA: O início é construído a partir de defasagens das mesmas notas nas diferentes vozes, como uma heterofonia. Me parece haver aí um pensamento contrapontístico, com o agenciamento dos encontros e desencontros entre as notas nas várias vozes, privilegiando certos intervalos (que são aqueles que me parecem ser os seus preferidos, pela recorrência com que aparecem com destaque, pelo menos nas obras do CD): sétimas maior e menor, nona maior, quinta justa e quarta aumentada. Há uma sistemática nesse procedimento?
EZ: Esta é uma ótima observação! O pensamento é mesmo heterofônico, mantenho prolongados certos intervalos que podem sugerir universos harmônicos originais. A ideia nesse segmento de abertura da obra é exatamente esta, e a sistemática consiste em tentar conseguir um universo harmônico razoavelmente homogêneo a partir das notas que essa linha melódica pode oferecer. Essa linha melódica está, por assim dizer, a meio caminho de uma melodia e uma polifonia.

MA: Frequentemente, surgem acordes que poderiam remeter a acordes tonais, como uma tétrade sem a terça (fundamental, quinta e sétima), o que evoca a sonoridade mas com toda a dubiedade. Outras dissonâncias não tonais são possíveis e parecem (des)temperar a sonoridade. Como você pensou as alturas nessa peça?
EZ: De forma similar ao que comentei em Ciaccona: há um acorde-espectro de muitas notas, e toda a composição parte desse acorde-espectro. Acrescentaria aqui, para uma explicação um pouco melhor do uso desses acordes, que a transposição de uma nota de uma oitava a outra não pode ocorrer nesse tipo de harmonia sem produzir modificações harmônicas talvez desestruturadoras. Em outras palavras, a equivalência de oitava (uma nota dó que pode ser tocada em diferentes oitavas e ser reconhecida como a mesma) não é um pressuposto assumido nessas harmonias que utilizo. Um dó central é um dó central e ocorre somente aí. Isto não impede que possa utilizar outro dó duas oitavas acima, por exemplo. No entanto, este será outro dó, como se fosse outra nota. Nesse sentido, para mim o piano não tem doze notas cromáticas. De fato, tem 88 notas, todas individuais, de tal forma que posso ter um acorde-espectro que ocupa todo o piano, do mais grave ao mais agudo.

MA: Nessa peça, me parece que as notas que demarcam territórios de polarização são o Fá sustenido e o Dó sustenido, sendo que este desliza para o Ré e o Dó natural. Esse deslizar de meio tom poderia ser interpretado como uma espécie de “bordadura harmônica”?
EZ: Sinceramente não saberia dizer se isso é certo. Precisaria analisar minha própria música sob esse enfoque. Meu procedimento construtivo não estabelece a priori esses eixos de polarização. Mas possivelmente você esteja certo.

MA: Como o próprio título indica, a peça começa de maneira bastante enérgica, mas seus trechos são bastante contrastantes, e creio que as indicações de expressividade (“Tranquilo”, “Deciso”) são boas balizas das mudanças de caráter pelas quais a obra passa. Em vários momentos, parece que se altera o andamento, mas isso acontece apenas por mudanças nas figurações rítmicas. É isso?
EZ: Exatamente. A marcação metronômica é constante, e as mudanças de andamento são realizadas dentro dessa marcação constante.

MA: Há uma convivência também de notas repetidas (energicamente ou quase jogadas, como se ricocheteasse o dedo sobre a tecla do piano) e formações mais melódicas e expressivas. Como você estruturou os materiais?
EZ: Utilizo as seguintes expressões para indicar o caráter da obra: Feroce,EspressivoDecisoTranquilo. Aparece uma indicação Cantabile, mas é ocasional. Essas quatro expressões de caráter indicam os materiais da obra, e em certo sentido elas já analisam formalmente a obra para os intérpretes. Cada expressão tem um caráter diferente, que poderia ser indicada assim:
Feroce: heterofonia
Espressivo: nota repetida expressiva
Deciso: figuração rítmica
Tranquilo:  alternância de duas notas (grave-agudo)
Esses quatro tipos de materiais são os que serão transformados na obra, de formas distintas mas relacionadas. Eles são materiais que se sucedem rapidamente, são breves e claramente contrastantes. Talvez pudéssemos organizar esses materiais em uma ordem ascendente de complexidade:Espressivo é a mais simples. Logo vemos TranquiloDeciso Feroce. Ou seja: nota repetida, nota alternada, nota alternada com ritmo e, ao desprender-se o violoncelo do piano, heterofonia.
A forma como os materiais se sucedem não é casual. Segue um plano arquetípico de frase que dá à obra uma consistência forte, unindo todos os fragmentos em um todo coerente.


Composição para piano VII [piano solo – 2013]

MA: A Composição para piano VII foi especialmente encomendada pela Karin Fernandes para este CD. Parti de um comentário seu, enviado num e-mail, que acho interessante compartilhar com o leitor:
“Como você poderá ver, esta obra é a Composição para Piano VII, e usa sete notas. O plano composicional é como o de Ligeti, com uma obra para uma nota, outra para duas… e esta é para sete, mas a obra não tem relação com as obras de Ligeti. Somente o plano composicional é o mesmo, tal como o plano composicional de prelúdios em diferentes tonalidades segue o plano de Bach. No caso, busco um diálogo com a tradição, como você já detectou, e aqui este diálogo está no uso das sete notas diatônicas. Mas a sonoridade é bem renovada! Outra coisa, o plano destas Composições para… não segue ordem cronológica. A Composição para piano VII não foi composta depois da Composição para piano V. O número da obra reflete o número de notas utilizado.”
No plano harmônico, você entrega o ouro, trata-se de uma escala diatônica, ou as teclas brancas do piano.
Mas o que me parece mais marcante nessa peça é a movimentação mecânica das formações escalares, quase como uma pianola. A referência à pianola me parece pertinente tanto nas escalas que “disparam”, ao modo de estudos técnicos, quanto nas escalas do início e de outros momentos em que são introduzidos silêncios no lugar de algumas notas – como se os furos no papel fossem evitados ali. Sem dúvida, o que traz essa pianola ao mundo do piano são os acordes sustentados, as ressonâncias e os jogos de pedais.
Mas diga, como esse comportamento “mecânico” participa de sua composição? Noto inclusive que nesse caso você evitou as indicações de expressividade, exceto pela indicação do início “Vivo” – que numa leitura que ressalta a mecanicidade torna-se a um só tempo irônica e transcendente: uma “máquina viva” ou um humano que se faz máquina, transcendendo-se e transcendendo-a. Ou não?
Essa mecanicidade não deixa de fazer referência ao minimalismo, embora sua peça não soe como Steve Reich ou Philip Glass. O que acha?
EZ: Achei ótima esta leitura da indicação “Vivo” em relação à mecanicidade de obra. Há uma mecanicidade na obra, e a associação com a pianola é muito pertinente. As escalas disparam, e não sabemos bem se estamos escutando uma música com melodias ou temas ou… O que é isso tudo finalmente? Perturbador! Demorei muito para compor esta obra. Quase um ano inteiro, amadurecendo até conseguir chegar a um resultado que me convencesse plenamente,  já que trabalhar com as sete notas diatônicas é tudo menos fácil. A técnica do piano é reinventada para a construção de ritmos, que pode ter algo de minimalista mas realmente soa diferente. Parece que temos virtuosidade, técnica e muito mais, formando um grande híbrido. A forma é todo um desafio, e o que é hierarquicamente um destaque ou plano de fundo… tudo isso permuta constantemente, e creio que nada é o que parece, exceto uma coisa ou outra.

MA: A notação dos pedais é bastante precisa e cuidadosa, assim como a escrita das dinâmicas. Sinto que há na peça algo como um “soltar e prender” a ressonância, um dar e recolher. Sinto que este é um aspecto mais delicado da composição, que requer uma interpretação bastante sensível. É como se o intérprete devesse estabelecer dois planos: num primeiro ele “liga” as mãos e deixa-as produzir o som da maneira mais precisa e neutra possível, como uma máquina; mas no segundo plano vai manejando esse som como se tivesse diante de si uma mesa de som com os potenciômetros, dando mais ou menos ressonância de um modo quase independente das mãos. É claro que muitas articulações do pedal estão diretamente ligadas às articulações dos trechos de frases (se é que aqui o termo frase é pertinente, me parece que não), mas isso não muda o que estou falando. Como você pensou esse agenciamento das ressonâncias nessa peça?
EZ: Este é um aspecto fundamental na obra, e concordo com você que é, em termos de interpretação, um dos pontos mais sensíveis. Deve haver um cuidado todo especial nesse aspecto, porque a obra pode perder completamente o seu caráter. O pedal funde as sonoridades, cria um ambiente um pouco turbulento em certas partes da obra, mas a clareza deve prevalecer.
Este é o ponto trabalhoso. Há sonoridades secas, outras que mesclam sonoridades sustentadas com secas, e outras que são muito reverberantes. Esses níveis se articulam à sonoridade e permitem que as sete notas diatônicas sejam escutadas de forma muito distinta em cada momento. São sete notas, mas com pedal ou sem pedal soam muito diferentes, e essa diferença articula o pensamento construtivo da obra.
Tenho que acrescentar, também, que compus essa obra tocando o piano, e pude testar a cada momento os resultados. O pedal, aqui, é um elemento narrativo também. Quem toca essa obra toca as teclas e toca também o pedal, já que sua presença ou ausência substitui o fraseado por ressonância. Esse é um piano completamente reinventado.

MA: Esse contraste entre ressonância e articulação é obviamente ligado a duas dimensões temporais que participam marcadamente da obra: o tempo curto e o tempo estendido. Configuram-se até mesmo melodias nas oitavas (ora na mão esquerda, ora na mão direita), com notas mais longas. Os glissandi de notas fazem também essa passagem de determinados elementos para o grave ou para o agudo.
EZ: Sim, exatamente. O pedal realmente conta parte da história da obra. É um contraponto entre toque com os dedos no teclado e pressionar o pedal com os pés. O pedal é narrativo.


Fantasia [violino, clarinete, violoncelo e piano – 2009]

MA: Pelo que soube, Fantasia é outra obra que você compôs para a Karin?
EZ: Sim, essa obra foi composta para Karin Fernandes com o Trio Puelli, mais o clarinete. Foi para um projeto anterior, mas a oportunidade real de sua gravação surgiu somente agora.

MA: A primeira coisa que me chamou a atenção nessa peça foi a formação: igual à do Quatuor pour la fin du temps do Messiaen! E as figurações no clarinete, logo no início, também me remetem um pouco aos cantos de pássaros estudados e aplicados por Messiaen, em particular no clarinete do Quatuor. Os acordes, sempre com suas sétimas maiores ou segundas e nonas menores imiscuídas em meio a outros intervalos (como quintas e, nessa peça, terças), novamente me falam de Messiaen.
Aliás, se me fosse facultado eleger o “intervalo da peça”, seria sem dúvida a terça menor, que logo de cara é apresentada no clarinete (mi-dó#, descendente) e que reaparece muitas outras vezes: fá-ré, mib-dó e por aí vai. É uma terça de canto de pássaro que depois adquire muitas outras funções. Procede?
EZ: Neste caso, o diálogo com o Quatuor de Messiaen ocorre na primeira parte da música, que retorna algumas vezes. O diálogo era para mim imediato, já que a formação instrumental é exatamente a mesma. O intervalo de terça menor é realmente importante, mas não foi pensado de forma motívica. Ele é o resultado de um trabalho com acordes-espectro, como expliquei antes, no qual o intervalo de terça, nesta obra, é importante.

MA: Os cantos de pássaro para mim são evocados também nos trilos, principalmente aqueles curtos que surgem no meio de um compasso, e principalmente no clarinete. Mas também nas notas repetidas (que passam do violino ao clarinete à mão direita do piano). E ainda em figurações rápidas de tessitura mais expandida do clarinete e depois do piano: lembram o movimento de clarinete solo do Quatuor.
EZ: Esta leitura é possível, mas particularmente penso que meu diálogo com Messiaen ocorre somente no material inicial. O que surge à continuação são outros três materiais, com características antagônicas. No entanto, é perfeitamente possível escutar algo de Messiaen também nesses materiais. Há aí outra técnica, o deslocamento, que faz que os trinados em outros momentos possam sim ser escutados como uma referência ao Quatuor.

MA: Como você pensou harmonicamente essa peça? Mais uma vez, há certa “funcionalidade” harmônica, que não está ligada à harmonia ou funcionalidade tonal, e no entanto é nítida a sensação de que a harmonia dessa peça “conduz”, ela contém uma “progressão”… não chego a desvendar qual a “lei” dessa progressão, mas ela se mostra com evidência, principalmente quando uma mesma textura, com fraseado idêntico nos vários instrumentos, é reapresentado com outras notas, como se houvesse uma transposição (só que não exata), mas uma transposição à qual se chega por um processo “modulatório”, por assim dizer. Como é isso? Qual foi o pensamento harmônico para fazer os acordes levarem o ouvinte?
EZ: O procedimento é similar ao que comentei antes: há um grande acorde-espectro que organiza todas as notas da obra. Ocupa várias oitavas, e se apresento um certo material em uma certa altura deste acorde e logo transponho este material dentro do acorde (as notas estão fixas neste acorde), consigo produzir este resultado que você está comentando. Não penso em escala ou tonalidade, mas em um grande acorde-espectro que dá o fundamento para a obra.

MA: A nota dó# parece ser a mais polarizada, funcionando como um pivô em diversos pontos de articulação importante. Está no acorde inicial e no acorde final da peça, mas também na figuração melódica do clarinete no início. Soa como uma espécie de “tônica”, de centro de repouso, se posso me expressar assim. O afastamento desse centro para retornar a ele no final remete claramente a uma ideia de desenvolvimento harmônico livre, o que justifica o título da peça: Fantasia! Há um fluir harmônico que num dado momento retorna. No meio do caminho há texturas diferentes, que se repetem, em geral modificadas. As formações escalares novamente parecem fazer referência a um modo menor “alterado” de dó#, algo que sem dúvida ressalta ao ouvido em função da pregnância afirmada com a terça menor dó#-mi durante toda a parte inicial da peça.
EZ: Novamente quero dizer que gosto muito da forma como você explica a obra, e sua percepção bastante sensível a essas notas de referência que de fato formam centros de atração. Eu aprecio muito que minha música possa despertar essa escuta de centros de atração, de tensão e repouso. E só posso agradecer que você aprecie esta obra e que a considere a que mais gosta do CD. É uma verdadeira realização, como compositor, ter uma leitura desta obra e das demais da forma como você está realizando nesta entrevista. Se fosse possível, gostaria muito de, no futuro, conhecer sua análise pormenorizada desta obra. Tenho certeza que vou aprender muito com sua visão e a forma como você interpreta esta composição. Será extremamente útil para mim!


S’io esca vivo [três pianos – 2010]

EZ: S’io esca vivo foi uma encomenda de três pianistas nos Estados Unidos, em 2010, e foi estreada em Geórgia. No entanto, não foi gravada anteriormente a este CD.

MA: Percebo agora, lendo a nota inicial da peça, como ali está sintetizada toda a discussão que temos tido envolvendo evocações, tradição, história e estética. “The dialog between all re-interpretations is the center of a dramatic plot that connects all the work, and the result of it is expressivity: a contemporary expression that is built on a set of some very human feelings, reaching our contemporary ears in a singular and contemporary-humanist way”. [O diálogo entre todas as reinterpretações é o centro da trama dramática que conecta a obra como um todo, e o resultado disso é expressividade: uma expressão contemporânea que é construída num contexto de sentimentos bastante humanos, que chega aos nossos ouvidos contemporâneos de um modo singular e humanístico-contemporâneo.] A sua concepção de contemporaneidade assim como sua estética parecem passar sempre por esse caminho “humanístico-contemporâneo”. Não vejo você levando diante de uma discussão estética sem passar por esse ser contemporâneo, ou um “sentir contemporâneo”. O que é para você esse “contemporary-humanist way”?
EZ: Ser humanista, tal como concebo este conceito dentro do campo musical, é pensar e trabalhar em uma escala humana, sem ser antropocêntrico (prefiro todo o contrário de ser antropocêntrico). A experiência musical em escala humana, para mim, tem prioridade sobre os sistemas composicionais teóricos (alguns deles sem resultados pragmáticos convincentes). Minha música valoriza e coloca em primeiro plano a experiência real com os sons, a comunicação entre essa experiência e nossa escuta, e o sentido (ou o efeito pragmático) que essas experiências pode produzir, sempre buscando descobrir novas formas concretas que um pensamento sobre música pode adquirir.

MA: Você explica que essa peça parte de um ornamento “reinterpretado” do Orlando di Lasso. É possível traçar “filiações” dos materiais da peça em relação a esse ornamento, tal como ele é apresentado no início da peça. Ou proceder diferentemente e conceber que os materiais derivam-se mutuamente uns dos outros. Quero apenas ressaltar o fato de que parece ser possível entender que os acordes repetidos, as figurações escalares, as melodias no baixo sobre acordes, ou outras figurações mais rápidas (como as sextinas), todos esses materiais podem estar na origem e podem gerar os outros. Há uma coerência clara, mas não necessariamente uma direção. Você concorda? Ou não, há mesmo uma derivação de um material de “origem”?
EZ: Concordo com você. Não há uma derivação no sentido de partir de uma figura e extrair outras, como se poderia realizar de uma forma clássica ou também serial. O trabalho de derivação não é do tipo mensurável, mas qualitativo.

MA: Três pianos de algum modo recuperam a dimensão “coral” da peça inspiradora dessa obra, a peça do Lasso?
EZ: Essa é uma leitura bastante interessante, e se aproxima muito de meu pensamento composicional. Na verdade pensei cada piano como uma voz, como se tudo formasse um madrigal a três vozes. Essa é uma relação perceptível na obra, e é possível identificar entradas de vozes como em uma exposição, imitações, contrapontos etc. Cada piano é de fato uma voz.

MA: “Se eu escapar vivo”… Se você escapar vivo de quê?
EZ: Ah! Este título do CD foi uma sugestão da Karin! [MA: A Karin diz que foi uma sugestão do Edson...] Mas o título dessa música é o título do madrigal de Lasso. Um madrigal belíssimo! Trata-se de um título representativo do humanismo implícito em toda nossa conversa. A música é uma criação humana, é uma linguagem capaz de refinar e desenvolver as formas como percebemos e construímos o mundo através de nossa percepção. No madrigal de Lasso essa frase é a de um navegante que espera chegar a um “bom porto”. Como hoje, creio que o navegante de Lasso não sabe exatamente onde está, mas ele não está perdido. Quem constrói o seu próprio caminho nunca está perdido.